Fernando
Gabeira
O sucesso do filme Lincoln,
de Steve Spielberg, inspirou uma série de artigos nos Estados Unidos
ressaltando a importância da política, quando é realizada por pessoas generosas
com o objetivo de melhorar a vida de milhões.
Os articulistas esperam que
a exibição do filme leve os espectadores a lamentar a mediocridade da atmosfera
política de hoje e que desperte o desejo de elevar seu nível por meio da
própria participação.
Não vi o filme, apenas as
entrevistas de Spielberg e de Daniel Day-Lewis, que interpreta Lincoln.
Consegui, entretanto, o livro que, de certa forma, inspirou o filme: Team of
Rivals, The Political Genius of Abraham Lincoln, de Doris Kearns Goodwin. A
autora se estende também na biografia dos três candidatos que disputaram com
Lincoln no Partido Republicano. Todos jovens ambiciosos e capazes, admirados
pelos seus eleitores.
Não posso prever que efeito
o filme terá nos Estados Unidos. Noto apenas que a época empurrava para a
grandeza: todos saíram de casa e cruzaram os Estados Unidos para construir sua
carreira. E havia um grande tema esperando por eles: a escravidão.
Os grandes temas ajudam,
quando os políticos são capazes. Joaquim Nabuco, no Brasil, enriqueceu sua
trajetória na luta contra a escravidão. Lincoln é produto de outra cultura e se
insere de modo especial no momento político americano. Mas, como a reflexão
sobre a política trata de variáveis universais, pode ser que desperte algum
interesse no Brasil.
Vivemos um momento
estranho. Dois presidentes, José Sarney e Lula, defendem-se reciprocamente com
o argumento de que estão acima de suspeitas ou investigações. Sarney conferiu a
Lula a condição de inalcançável e este, por sua vez, no auge do escândalo no
Senado, afirmou que Sarney não deveria ser tratado como uma pessoa qualquer.
Criaram uma irmandade dos intocáveis. Sarney já tem um museu dedicado à sua
vida; Lula está a caminho de construir o seu.
Além de intocável e com um
museu ainda em vida, Sarney também é imortal. Essa condição ainda falta a Lula,
mas não me surpreenderia se o amigo conseguisse para ele uma cadeira na
Academia de Letras.
Na década de 1960, escrevi
um artigo ironizando as pessoas que se achavam especiais porque moravam em
Ipanema. Até hoje rola pela internet. Jovem existencialista, mostrava a
futilidade de se julgar especial por pertencer a algum lugar ou grupo ou mesmo
por alguma condição nata. Era a forma de negar a importância das opções
cotidianas, a construção de nossa realidade por meio das escolhas mais
intrincadas. Sarney e Lula não reivindicam uma vantagem nata, muitos menos a
que decorre do pertencimento a um grupo ou lugar. Eles se reclamam intocáveis
pelos serviços prestados ao país. E nisso reside seu erro monumental. Não
existem serviços prestados ao País que possam garantir uma condição acima de
qualquer suspeita. E, se foram prestados com essa expectativa, corrompem as
suas próprias intenções generosas.
Sarney e Lula fizeram nesse
aspecto particular um pacto pelo atraso. Com o domínio do Congresso que o
primeiro exerce e a popularidade do segundo, continuam com potencial de
mobilizar a maioria. Mas sempre existirá uma minoria, resistindo com a frase
tantas vezes subversiva: somos todos iguais perante a lei.
Compreendo que há uma luta
política. Os governistas precisam proteger a imagem de Lula, pois ela é a
garantia de futuras vitórias eleitorais. O desgaste de Lula enfraquece um
projeto de poder.
Não compreendo, entretanto,
o argumento que nos faz retroceder ao período anterior à Revolução Francesa.
Esse desejo de poder estendido ao controle da biografia, da inevitabilidade da
morte, do alcance da lei, é um desejo patético.
Mesmo aqueles que acham que
o mundo começou com o nascimento de Lula, em Garanhuns (PE), ou com o
nascimento de José Ribamar, em Pinheiro (MA), deveriam ser sensíveis à bandeira
da igualdade.
A fraternidade dos
intocáveis é uma construção mental que rebaixa as conquistas do movimento pela
democratização no Brasil e nos divide entre semideuses e seres humanos.
Na verdade, o argumento dos
dois presidentes aprofunda a desconfiança na política e nos políticos. Por isso
a chegada de Lincoln, o filme, apesar de uma cultura e uma época diferentes,
pode ser um pequeno sopro de ar fresco na sufocante atmosfera política
brasileira.
Nem nos Estados Unidos nem
aqui é possível repetir a grandeza política de Lincoln. Já no segundo capítulo
do livro de Doris Goodwin é possível imaginar como Lincoln brigaria feio com os
marqueteiros modernos: ele se recusava a dramatizar ou sentimentalizar sua
infância na pobreza.
Ainda assim, com todas as
ressalvas, precisamos de outras épocas, outros líderes, para ao menos desejar
algo melhor do que o que estamos vivendo. Não me refiro, aqui, à satisfação
majoritária com as condições materiais de vida. Muito menos quero dar à
trajetória democrática no século 21 a dramaticidade de um tempo de guerra e
escravidão.
Quando um presidente do
Brasil diz uma barbaridade, sentimos muito. Quando dois presidentes dizem a
mesma barbaridade, isso nos obriga a apelar para tudo, até para um bom cinema.
Depois do cha cha cha della
secretaria, Lula se vê em apuros com as denúncias de Marcos Valério. Concordo
com os petistas de que não se deva confiar nele, embora tenham confiado tão
profundamente em 2003. Mas a melhor maneira de desconfiar é analisar as acusações,
apurando-as com cuidado. É assim que se descobre o que é verdade e o que é
mentira.
Fora disso, só construindo
uma redoma onde Lula e Sarney possam estar a salvo dos percalços que ameaçam os
simples mortais. E criar essa visão religiosa de uma santíssima dualidade. E
ninguém se ajoelha e reza diante dela, porque a ferramenta hoje não é oração do
passado. Basta um #tag.
Se Sarney e Lula se
contentassem com um museu e a condição de imortais, tudo estaria bem. Mas,
mexeu com a igualdade, mexeu com todos nós.
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